terça-feira, março 18, 2008

CULTO DO DEVER



Mousinho há pouco assentara praça.
Fizera-o por instinto e vocação
Seguindo o exemplo dos da sua raça:
- Tudo por Deus, pelo rei e pela Nação.

Um dia, a avó velhinha – enfraquecida
Menos pela doença do que pela saudade
Doutro soldado, ao qual ligara a vida
Desde os tempos da clara mocidade -,

Mandou-o chamar e disse-lhe: - “Joaquim:
Guardo do teu avô, como sagrada
E suprema relíquia para mim,
A Condecoração da Torre e Espada.

Ganhou-a pela Pátria, altiva e bela,
P’la qual tombou no campo do dever
Honrando o nome, pois morrer por Ela
É a honra maior que pode haver!

Essa relíquia, sempre vida fora
Me acompanhou, tal como a Dor e a Prece.
Hoje, porém, sinto chegada a hora
De lhe dar o destino que merece.

Por isso te chamei; para ver perfeito
O velho e lindo sonho que vivi...
És um soldado. Quero-a ver no teu peito.
Podes levá-la, filho. É para ti.

“Mas... minha avó – articulou o moço
Olhando a nobre insígnia do valor
Da lealdade e mérito – eu não posso
Usá-la... bem o sabe... Com amor

Mas dando à voz um excepcional poder
De sugestão, ela vibrou, baixinho:
- “Pois faz por ganhá-la. É o teu dever
Por que, além de soldado, és um Mousinho”.

Esta história tão simples na aparência,
Que enche as almas de luz e que faz bem,
Quem poderá dizer qual a influência
Que operou no espírito do herói? Ninguém.

Mas Deus sabe, no avanço de Coolela
Na jornada feliz de Manjacaze,
Quantas vezes Mousinho pensou nela;
Que poder teve nessa estranha fase

Da sua vida de guerreiro audaz,
A cujo engenho valoroso e sério
Devemos o prestígio, a glória, a paz
Em todo o território do Império!

Quem há que não conheça em Portugal
O que foi a prisão de Gungunhana,
Levada a efeito no seu próprio Kraal
Com cinquenta homens, causa sobre-humana?!

Chaimite, povoação de simples planta
Erma e silente, como sem ninguém,
Era uma espécie de cidade santa
Dos vátuas, entre morros de muchem.

O Gungunhana ali se recolhera
Com mais de três mil negros insubmissos,
Seguro de vencer quem o vencera
Depois de praticar certos feitiços...

E foi ali nesse lance de temor
Que ainda hoje assombra os mais ousados,
Que o valente Mousinho o foi prender
À frente dos seus homens, mal armados.

Depois deste alto feito de Chaimite
Podia usar, enfim, a Torre e Espada,
- Prémio dado aos heróis, quase limite
Da glória militar tão desejada!

Podia-a usá-la, firme de que tinha
Honrado o nome ilustre, e satisfeito
A última vontade da velhinha
Que lhe dissera: - “Quero-a no teu peito!”

Ela, do céu, devia ter seguido
O rasto dos seus passos pelos caminhos
Da terra e, um sorriso agradecido
Por certo que em seus lábios mirradinhos

Pairou, nesse momento de ventura!
E Mousinho, o soldado de Coolela
E de Chaimite, exemplo de bravura
- Com certeza vibrou pensando nela!

Há sempre um encanto raro, excepcional
Oculto sob as páginas da História
Do nosso bem-amado Portugal!

Esse mistério é que conduz à glória,
Vezes sem conto, o português fecundo
Em rasgos de ternura e de nobreza.

Bendito seja Deus que fez o mundo
E pôs, no mundo, a gente portuguesa!

Silva Tavares
in A.G. do Ultramar de Fevereiro de 1936, “Dia de Mousinho”